Sob aplausos e alegria, Raquel Trindade se despede nos braços do povo

Por Assessoria de Comunicação de Embu das Artes | 17/04/2018

Raquel Trindade, a Kambinda, faleceu no domingo, 15/4, aos 81 anos, após complicações de uma cirurgia, mas nos deixou seu legado de fibra, autenticidade, perseverança, fé, orgulho racial e ativismo cultural. Viveu, reviveu, criou, interpretou e divulgou a cultura negra, raízes do Brasil que as próximas gerações não esquecerão jamais, como o maracatu, jongo, coco e tantos outros. Foi escritora, artista plástica, folclorista, dançarina, coreógrafa e atriz.

Seu velório, ocorrido na segunda (16/4) no Teatro Popular Solano Trindade, em Embu das Artes, foi alegre. Teve música, depoimentos e declamações, intensas e poéticas como fora sua vida. Lá compareceram muitas pessoas, amigos, artistas, familiares, sambistas, ativistas, autoridades, populares, correntes de várias religiões, não crédulos e ideologias. Enfim, uniu diversidades em um sentimento único de reverência e respeito.

O cortejo partiu. Atrás dela, um corredor humano, trajados de branco ou não, mesclado ao som do maracatu, danças e cantos, levaram seu corpo pelas ruas de Embu das Artes que muitas vezes a viram passar, espalhando seu inconfundível brilho artístico. No caminho, todos se emocionaram ao se depararem com as crianças da Escola Municipal Mellone que, juntas, prestaram a justa homenagem a Kambinda, coladas ao gradil da escola, onde um cartaz dizia: "Raquel, você encantou Embu, agora vai encantra o céu". Seguindo em frente, uma parada ocorreu em frente ao Museu de Arte Sacra, como uma saudação à filha dessa terra que tanto fez pela cidade.

Descendo a ladeira, o povo seguiu o cortejo até o cemitério do Rosário, onde mais homenagens foram prestadas. Todos se despediram de Raquel, sobe um cântico conduzido por seu filho, Vitor da Trindade: “Adeus, adeus, eu já vou embora, eu deixo aqui felicidade, os ensinamentos, a transformar a dor da vida, muito obrigado, uma salva de palmas, boa viagem”.

Sempre viva entre nós

“Depois que vim para Embu das Artes, em 1986, passei a conhecer mais a pessoa e seu trabalho e aprendi a admirá-la”, disse o artista plástico e amigo, Paulo Dud. “Ela teve um trabalho de mestra na cultura negra e qualquer adjetivo que eu fale é muito pouco para definir Raquel Trindade”, completou ele.

“Ela nos ensinou com sua arte e sabedoria que a luta contra o racismo tem que partir de todos que acreditam na dignidade humana e ela vai ficar pra sempre entre nós, ainda mais viva”, falou o poeta Sérgio Vaz, presente à homenagem.

Rica biografia de Raquel

Raquel nasceu em Recife, Pernambuco, em 10 de agosto de 1936. Filha do poeta Solano Trindade (também folclorista, pintor, ator, teatrólogo e cineasta) e da coreógrafa e terapeuta ocupacional Maria Margarida Trindade, mudou-se com a família para Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, na década de 1940. Pouco depois, a família mudou-se para São Paulo, onde iniciou amizade com diversos artistas.

Por meio do Mestre Assis do Embu, aluno do terracotista Mestre Sakai, Solano Trindade veio para Embu das Artes em 1962. Tem início a influência da cultura negra nas artes de Embu. Solano, juntamente com sua filha Raquel, congregou vários artistas que passaram a viver e produzir suas obras na cidade, além de ser o mentor do movimento que, nos anos 60, trouxe mais uma tradição dos Santos para Embu, desta vez, a dos orixás africanos.

Para homenagear Solano (falecido em 1974), Raquel Trindade fundou, há 43 anos, o Teatro Popular Solano Trindade, em Embu das Artes, mantendo viva a herança e o legado do pai que, em 1950, havia criado o Teatro Popular Brasileiro, no Rio de Janeiro, em parceria com Maria Margarida Trindade, sua primeira esposa e mãe de Raquel, e o amigo pesquisador Edson Carneiro.

Com Edson, Raquel percorreu a Polônia e a República Tcheca (ex-Tchecoslováquia) para mostrar a sua dança. Mesmo sem ter feito uma faculdade, foi convidada para lecionar sobre folclore e teatro negro na Universidade de Campinas (Unicamp) em 1977, e depois ministrou o curso de extensão “Identidade Cultural Afro-Brasileiro”, na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) na década de 90.

A artista também publicou livros: um sobre a história de Embu das Artes, uma segunda edição ampliada, uma trilogia sobre os orixás, e um sobre instrumentos musicais africanos.

Solano Trindade não poderia deixar uma herança mais multirracial e cultural. A família Trindade mistura negros, brancos, amarelos, índios. “Papai já tinha a visão de que a gente se uniria a todas as raças, tanto que tenho netos ‘japonegro’, afro-germânico, e papai falava ‘tenha orgulho de ser negro e das nossas tradições’”, ressaltou Raquel certa vez.

Ao longo das quatro décadas de existência, sempre com Raquel Trindade à frente, o Teatro Popular Solano Trindade tornou-se referência na preservação e promoção da cultura negra e popular. Hoje, oferece oficinas de dança afro-brasileira, percussão, hip hop, dança de salão, dança afro, entre outros ritmos da cultura popular brasileira.Também realiza ensaios abertos de maracatu, coco, samba lenço, cafezal, lundu colonial, jongo, ciranda, bumba meu boi, ritmos dos Orixás etc.

Assim como no maracatu a principal personagem é a rainha, no Teatro Popular Solano Trindade a estrutura matriarcal se manteve. Embora hoje o Teatro seja gerido pela família Trindade como um todo, sua existência continua centrada no protagonismo de Raquel, a Rainha Kambinda.

Ativista da cultura negra, artista plástica, dançarina, coreógrafa e também fundadora da Nação Kambinda de Maracatu, Raquel Trindade foi uma mulher que viveu a pluralidade das artes durante todos os seus dias.

 

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