Conto: Eliminando Tártaro Dentro do meu Barril

Por Outro autor | 2/02/2015

A luz sobre o meu rosto me faz temer a limpeza.
Tártaro por todos os lugares.
Uma gengiva inflamada.
Começo de cárie no molar.

A cadeira sobe comigo e posso ver o Parque Paraíso da janela do consultório, costurado por suas ruas enegrecidas, tracejando os morros por onde as casas se agarram. A tranquilidade de uma manhã entardecida por sobre os postes apagados, motos e carros trilhando vielas de suas próprias vidas, trancafiados na prisão de eletricidade e miolos da própria mente, por entre as barras invisíveis da própria vida, das próprias preocupações. Por um minuto penso numa metáfora, penso que a vida é como estar num barril vendo outras pessoas na mesma situação enquanto todos descem o caudaloso rio do tempo que leva cada um de nós em direção ao desfiladeiro - inegável morte. 

A tragédia tem sempre um lado belo.
Cada um de nós carregando suas irrelevâncias dentro de seu barril.
 Ninguém vê.
 Todos preocupados com o fim.
 E com seu próprio barril.

A máquina do dentista começa a trabalhar, cantando o hino de sua existência em um tom muito alto. Tártatotártaroártarotártarotártaro - agudo como o gemido de um pequeno cão morrendo. 

 Do outro lado da cidade um homem é baleado ao tentar roubar alguém na saída do Banco do Brasil. Itapecerica da Serra não está de luto por este homem porque ele tentou pegar algo que não era dele, como toda a estrutura financeira é programada para fazer, sem, no entanto, correr nenhum risco de ser alvejado por balas de ponto trinta e dois. Ele está respirando como se fosse morrer, e vai. Em algumas horas a notícia se espalhará pela cidade, conhecidos com fotos no celular, pessoas aplaudindo de pé a morte de uma pessoa supostamente ruim - como se isso de fato existisse, portais de notícias linkados em redes sociais com a gloriosa foto na manchete. Todos satisfeitos por terem em mãos uma história com final feliz, sorrindo sadicamente com a morte, vangloriando o dinheiro retomado.

Entenda uma coisa: Nada se opõe ao dinheiro.
Dois mil reais é um bom preço por uma vida.

O corpo de alguém estirado na calçada junto de sua motocicleta.
Dois mil reais voltando ao seu dono e um título de herói que levará o atirador pra bem longe daqui.
Se ele quiser viver, é claro.
O corpo de alguém, não importa quem, não importa porque, só importa dois mil reais de outro alguém.
Alguém?
Tem alguém aí?
Não saia do seu barril.
Você morre.
Como alguém estirado sobre a calçada, vivendo as últimas horas da sua vida que vale dois mil reais. No muro à sua frente, um garoto deitado de costas - grafite colorido - bonito como se vê, e em letras de forma bem desenhadas: "Quanto mais eu conheço o ser humano, mais eu confio nos meus cachorros".
Uma piada pronta.

Tártarotártarotártarotártaro - A limpeza continua, eu cuspo sangue e limpo a boca no guardanapo preso ao meu pescoço, só o incômodo de dentes sujos sendo raspados e gritando unhas arranhando lousas, e eu não sei que um homem morre há poucas quadras daqui.

Poucas lágrimas vão rolar.
Seus próprios amores lamentando em algumas horas.
Pulmões e intestinos perfurados.
Apenas um pedaço de carne para a máquina. 
Apenas uma poça a mais de sangue sobre a calçada para se lavar.
O jovem terceirizado fará isso. Não se preocupe.

Não saia do barril.
Você morre.

"Você precisa usar mais fio dental. Sua gengiva tá beeem inflamada."
O doutor baixinho repete arrastando a palavra.
 "Beeem inflamada."
Santo Deus! Preciso resolver isso.
Enquanto isso um homem morre.
 "Segunda-feira terminamos isso e começamos a tratar desse início de carie aí."
Estou aliviado porque a raspagem terminou por hoje.
Estou satisfeito e convencido de que preciso usar mais fio-dental.

Essa tarde uma mãe vai chorar.
Irmãos vão chorar.
Amantes vão chorar.
Amigos vão chorar.

Eu não.

Eu só preciso usar mais fio dental.

Autor: Raul Ferro - Leitor Jornal na Net  


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